Contos

 ALMA DAS RUAS

Ele tinha que resolver a própria morte para deixar prevalecer a vitória da cidade, enquanto ser pulsante. E era isso o que a cidade queria dele. Era um homem cheio de labirintos e não lhe bastava somente a verdade, mas encontrar o amor perdido. Obrigatoriamente via-se nele dupla posição: de realidade e de passado.

Carlos Alberto nunca seria domesticado pela cidade, que era a matéria prima para sua arte. A cidade sabia e a isso reagia com algum rigor bairrista. Às vezes ela procurava tornar Carlos Alberto mais sensato, temperando sua loucura, que ameaçava explodir no rosto de quem o olhasse de frente. Nesse momento ele proclamava que, o que fazia, era arte e passava a exigir o cachê pelo desempenho artístico. Seu discurso era composto de mosaicos que acabavam formando uma unidade na variedade que a todos encantava, porque ladrilhavam o pitoresco espaço de arte. Percebia-se nele uma metalinguagem que tornava rarefeito o ar de que alimenta o discurso poético. Era definitivamente um poeta, desses que carregam fogo na boca.

Um homem desses [1], que ornamentava a cabeça com uma galhada viking ou um elmo romano, poderia aparecer do nada no centro de qualquer cidade, mormente depois de reconhecidos seus direitos fundamentais pela última Constituição Federal. Para anunciar mercadorias e serviços, cobria-se até com trajes femininos num louvor ao bizarro. Qualquer fantasia lhe adornava o corpo esbelto. Tanto uma minissaia, quanto uma roupa de palhaço lhe produziam efeito mágico. Pelas ruas a gritar um rebuliço de convicções de sua peregrina alma, a primeira coisa que se conseguia ouvir é “Eu quero ser daqui”.

 Por onde andava sempre apontava marcos territoriais da cidade aos próprios nativos. Mas, num jogo encoberto, conseguia dar a impressão de nada querer dela, a cidade: “Eu não lhe pergunto nada. Até não me preocupo onde e com quem você esteja, mas toda noite eu sussurro bem baixinho até que o sono venha: ama-me, oh Floripa, por favor”. [2]

A bem dizer Carlos era um político, pois inspirava alguma confiança por seu natural feitiço. Gostava de dinheiro e, entre os atos de sua representação altissonante, chegava a ficar debochado. Nos últimos tempos, nenhum prefeito escapou de suas unhas, ou melhor, do seu megafone perfurante, que também sabia cantar: Mentirooooooooso... Ladrããããããããão... Corruuuuuuuuupto... Dizem que era traiçoeiro, astucioso e caluniador. Mas, dava mostra que era assim somente para se defender de estar no mundo sozinho. Se bem observado, parecia que entrara na vida da cidade caminhando de costas: o que tinha diante de si era um passado pedregoso que causava horror à cidade. Um passado pouco defensável. Às vezes parecia que a cidade o estava educando através de uma lei interior, que a todos sujeitava. Só que era uma lei difícil de ser seguida por quem vinha de fora.

Parecia residir nele um desencanto guardado na caixa preta do seu dolorido peito. Consta que veio para cá atrás de uma repórter que conhecera na televisão pernambucana, afiliada da rede Globo. E que, quando aqui chegou, ela já estava com um surfista profissional. Linda, a mulher impressionou um diplomata argentino que a levou dos sonhos dos homens, do surf e do chifre.

Hoje, Carlos Alberto é um chato cujo bom repertório de outrora se esgotou faz tempo. E, enquanto vai vivendo, vai, parece, derrubando tudo dentro das lojas que tanto anunciou. Lojas que tanto ajudou a faturar em cima das mercadorias anunciadas através do seu encantado megafone. Muitas empresas de Rádio e Televisão começaram suas atividades com um simples megafone nas mãos do bravo e pioneiro comunicador. A sociedade respeita e precisa do microfone nas mãos de alguém corajoso. Carlos Alberto trazia o seu aparafusado na mão esquerda.

Dizem que, das coisas que hoje faz enquanto acordado, todas são chamadas de burradas. Ele só faz estrume. E estrume grande, como aquele que, embriagado, se acostumou a emparedar as pessoas para pedir o cachê pelo próprio desempenho nas ruas. Ele ainda se vê como se fora um artista atuando no palco aberto da praça. Em sua cabeça deve ser mesmo, pelo próprio senso de estética e comunicação original com o povo; povo que nunca lhe negou os ouvidos, muito embora nunca o acolhesse. Nas ruas, todos o escutam, mas fingem que não. Ele é somente a imagem do que já foi. Sua alma errante chega a ficar invisível para os vivos. A cidade já o tem como finado. “Está ferrado”, é o que mais se ouve. Em compensação deitou com um sem número de mulheres que lhe levaram o dinheirinho. Alguns despeitados reagem: que se arranje com elas. Só que elas o abandonaram. Decerto por conta da infidelidade padrão nele residente.

Mas, onde estão os políticos e os lojistas de outrora que viram nele uma mídia feiticeira, que funcionava? Não estão mais. Doente, transgressor, drogado e chato, alguém tem que acudir Carlos Alberto, antes que aconteça o desprazer de vê-lo desmanchar-se por dentro. Tarde demais, a cidade agora quer dele a própria morte.

Muito embora um trapo vivo, ele ainda favorece a cidade anunciando sua verdade essencial: “Não me siga. Estou perdido”.

[1] Carlos Alberto Silva morreu de causas naturais em 20/09/2017 numa casa de repouso em Balneário Barra Velha. Natural de Recife, nasceu em 22/11/1943. Com seu equipamento de trabalho, um megafone, anunciava o comércio local, principalmente no Centro de Florianópolis, e também divertia os pedestres e as figuras públicas da cidade com suas tiradas muitas vezes constrangedoras. Diário Catarinense.

[2] Meta-texto de Caio Fernando de Abreu – 1948-1996 – jornalista, dramaturgo e escritor brasileiro. Apontado como um dos expoentes de sua geração.


Microcontos

TARDE DEMAIS

O que eu queria te contar era importante naquela hora. Agora temos que pular o muro de volta, senão a cachorrada nos pega. Melhor a prisão do que os dentes desses diabos.

 

INGRATO

Na fila, atrás de mim, descobri que havia um velhinho cheio de vida. Nele, as rugas eram suaves como a alegria. Perguntei-lhe a idade, mas ele mandou que eu cuidasse da minha vida.

 

UM HOMEM E SUA SOMBRA

Faz alguns anos que o vejo pescar na Avenida Beira Mar. Diz que é para se desligar da pressão do dia-a-dia. Desconfio que seja para viver seus momentos de paz, porque em casa, dizem, ele apanha da esposa.

 

CAPRICHO SINISTRO

Vindo em minha direção, a gerente com sorriso sedutor. Começou querendo me vender a vitrine, mas acabei comprando seu minivestido com ela dentro.

 

ACERTO DE CONTAS

Sepultei a mentira, desde que fui desmascarado. Passando enorme sofrimento, prometi nunca mais mentir. Hoje, meus dias têm maior qualidade, mesmo aqui dentro da prisão.

 

ALQUIMIA DO BEM

A moça padecia de um mal que ninguém conseguia sequer diagnosticar. Consta que nascera saudável e com dez meses contraíra doença neurológica que a incapacitava progressivamente. Divertida, dedicada e esperta, a garota tinha um traço de caráter que logo será revelado. Com vinte anos, e cadeirante há dez, os pais a levaram para uma consulta com o doutor José Candinho. Um homem baixo, totalmente calvo, extrovertido e animado, procurava sempre ver o lado bom das pessoas. Além disso, bastante observador, autoritário, exigente, misterioso e que valorizava a profissão. Após exames diversos, o médico decidiu que a moça ficaria no hospital para um tratamento que ele havia concebido. Depois de uma semana, entretanto, a jovem estava lá deitada numa maca da emergência sem conseguir vaga para um quarto. Quase tudo ali lhe era negado: a higiene pessoal, o repouso, a dignidade, a gentileza de um sorriso. Quando sucedia precisar de banheiro era tirada dali às pressas. Viajava pelos corredores olhando o teto e vendo os rostos distorcidos das pessoas; sentindo cada solavanco das rodinhas da maca nas curvas para chegar ao elevador e lá ficar confinada, acompanhada pelo murmúrio do engenho das correntes e dos contrapesos do elevador. Depois, de volta, tudo de novo sob o comando de outro atendente, pois o que a trouxera fora lanchar ou entregara o plantão para descansar no colchão macio de casa. Sentia-se longe da própria casa diante do efeito maca- na-emergência. Uma semana ali varreria da memória de qualquer um os contornos da própria carteira de identidade. Mas a moça era valente e resistia, saindo daquela impiedosa cena para se abrigar na vigorosa esperança que lhe nutria a alma. Todos os dias o médico vinha vê-la e dizia que estava providenciando um lugar. Durante o tempo que a visitava parecia que também fazia alguns exames misteriosos. Espetava- lhe as partes dormentes das pernas, das mãos, dos braços, dos pés, das costas, do abdome e da cabeça. Muito embora ela experimentasse leve desconforto, mantinha-se resignada durante os exames. Guardava uma fé quase absurda de cura mais-dia menos- dia. Mas os pais, vendo-a esperar naquele corredor, pressentiam que não ia acontecer nada. Tinham já apodrecidos os olhos do milagroso. Decidiram então levá-la para casa, à revelia do médico. Tiveram um trabalho imenso para encaixá-la naquela cadeira da má sorte. Ajuntaram as coisas e já iam saindo quando o doutor chegou.

— Vamos levá-la para casa. Isto aqui é desumano — disse a mãe.

— Ela não pode interromper o tratamento.

— Tratamento? O senhor está de brincadeira.

— Ela tem que ficar no hospital. Esperem que irei providenciar um quarto. Além do quadro clínico tenho de resolver o enguiço administrativo. Odeio isso. Saiu e não voltou, mas dois funcionários de roupões verdes, pantufas e toucas colocaram-na num quarto com mais duas mulheres. Então os pais da moça puderam dormir em casa naquela noite. No dia seguinte voltaram e não a encontraram. Havia duas camas vazias e uma paciente que dormia profundo. Deram-lhe alguns safanões delicados para acordá-la, mas parece que ela queria ficar dormindo. Com os olhos fechados perguntou “o que é?”

— Onde estão as pacientes? — perguntou a mãe com angústia na voz.

— As duas foram levadas à noite, mas parece que uma não resistiu. Disse isso e voltou a dormir no abismo. Pai e mãe entraram em aflição e desembestaram correria ao posto de enfermagem saber o certo. Escutava-se o desespero deles pelo corredor e muitas pessoas vinham ver. Nisso veio também o doutor José Candinho. Os pais voaram em cima para dele exigir explicações. Nem o deixavam falar, que, ainda assim, mantinha-se calmo.

— Vamos até o quarto — precisou decretar. O que aconteceu com ela e com mais alguns ainda não sabemos explicar. O certo é que isso está me trazendo algum desgosto e nociva fama porque está fora do padrão profissional. Sua filha é uma jovem de fé admirável. Só não abandono isso porque o meu sonho de ajudar os doentes é muito maior do que eu. Mas confesso que essa loucura está ganhando vida própria e ficando maior que tudo.

Para surpresa geral a jovem sumida saiu andando sozinha do banheiro enxugando os cabelos. Abraçou os pais e contou que estava curada. Que fora levada dali na madrugada para uma sala com pessoas que a esperavam. Que o doutor disse que iam fazer nela uma cirurgia, mas que durante o procedimento ninguém tocou nela. Que fora trazida de volta e dormira bem o resto da noite. Quando acordou quis levantar-se e tomar um banho.

— O resto vocês já sabem, disse ela.

Os pais procuraram o médico que não estava mais ali. Foi encontrado combinando no telefone móvel outra cirurgia para aquela noite, pois somente a noite sabia guardar os segredos dos fenômenos de assimetria.

 

BOITATÁ

“Um à-toa que nem o Alcides não se encontra por aí assim”. O próprio pai dizia isso do rapaz. Não que fosse mau, não era. Mas que era um safado aprontador, isso ele era. Durão, feito carapaça, mas tímido e introvertido que nem um tatu, quase sempre aproveitava as ocasiões para caprichar um desempenho fraudulento, mesmo que em cima do velho. Sobressaía-lhe a estatura alta, a pele morena, o cabelo bem preto, a fala mansa e curta e o olhar romântico que encantava as estudantes. O prazer de rir dos outros não lhe sobrepunha limites. Dizia que o mais difícil era fazer-se de insuspeito para ninguém dele desconfiar. Esse era o seu talento: manter-se oculto diante de todos; não se deixar revelar o próprio miolo.

Nos dias de hoje pode-se dizer que a caça ao tatu seja algo abominável, pois já tipificado como crime inafiançável.

Mas nem sempre foi assim. Alcides foi convidado para uma caçada no sítio do próprio pai, lá para os lados da Vargem do Bom Jesus. Homem da roça, seu Manoel tinha o costume de reunir os amigos em noite de lua cheia para caçar tatu. O homem parecia ter intimidade com o cascudo; que o criara no fundo do quintal até que o bicho topasse com a derradeira hora se ver caçado. Dava a impressão que fazia um bem danado ao bicho, que só comia insetos de tão inofensivo que era. Como os poderosos, chamava o tatu de ingrato quando o pobre esperneava para se safar do facão.

Alcides iria participar daquilo que valia como um rito de passagem para a condição de quase adulto: um moço. Mas o jovem fora criado na cidade, cheia que era de escaninhos zombeteiros. Definitivamente não era ainda um homem, mas o pai apostava nele; perdia sempre, mas arriscava. “Por enquanto esse à-toa não vale um ovo. Não presta para serviço nenhum. Mas um dia ele endireita”.

O rapaz chegou ao sítio uma semana antes da lua cheia marcada para o inocente folguedo. Os petrechos, o velho já havia preparado: lanterna de querosene, bocó, vergas de bambu, cortadeiras, facão, cavadeiras, jabuticaba na cachaça e o cachorro Sabido.

Chegada a noite, havia muita animação e uma tensão ancestral diante do ato de caçar. Tocaram mato adentro; Alcides na rabeira cantando Portãozinho e Porteirinha: “O tatu é bicho manso e nunca mordeu a ninguém. Só deu uma dentadinha na perninha do meu bem. Anda a roda tatu é teu; voltinha no meio tatu é meu.” O pai do rapaz queria mais silêncio na empreitada:

— Isca, Sabido! Vai procurar, vai!

O cachorro se mandou pela encosta de vegetação emaranhada. Agora era morro acima e todos em silêncio a espera do cão, que não vinha; que nem latia. De repente o ganido conhecido do animal rasgou o silêncio e a correria na direção dos latidos através da capoeira grossa. Difícil, porque no escuro não se viam as pedras, os paus, os galhos, a lama e os formigueiros. “Perdeu-se o bicho” decretou o chefe da caçada. De repente Sabido saiu latindo como a dizer: “ali está, por aqui, gente”. Não fosse tão escuro, era de se dizer que o cachorro apontava a toca com a patinha abanando o rabo feliz.

Enquanto isso Alcides fuçava sozinho para outros lados. Foi aí que encheu o peito e gritou bem alto: “Peguei um”. E baixinho com orgulho: “O pessoal não vai acreditar que achei um baita logo na primeira vez”. Não era fácil conseguir um; quantas vezes o grupo voltava sem nada? E olha que era gente de sorte. A diminuir o desencanto, naquelas vezes em que nada trazia, Manoel desdenhava o insucesso dizendo que fora caçar só por farra. Mas Alcides bem sabia que o velho ficava desconsolado. Isso ele via quando lá um belo dia o grupo trazia um bicho. Então o velho fazia uma festa daquelas.

Diante do buraco, Alcides preparou a verga de bambu para cutucar a toca; devia esperar o pai, mas não quis dividir a glória. O vasilha não conhecia nada de mato; fora criado na cidade, lugar onde só se via tatu nos livros. Cutucão daqui, cutucão dali, o bicho fugiu. Nisso ele viu a turma chegando para ajudar a desentocar o desdentado. Alcides agarrou uma cabeça de pedra e fez que rolasse morro abaixo fazendo grande estrondo. “Fugiu, fugiu”, gritava fingindo desencanto. O pessoal saiu correndo atrás do barulho medonho; inclusive o cão, que se meteu na frente da pedra para barrar-lhe a fuga e dela tomou um solavanco resultando um vergão no lombo. O velho achou que o bicho fazia estrago demais na coivara; devia ser mais que um porco-do-mato ou mesmo um terneiro assustado. Vieram descendo na pilha do barulho, mas já viam também o rastro deixado para trás na roça de cana. “É coisa grande”, alertava o velho já temeroso: “Deus que me perdoe, mas parece um boi-tatá”. Quanto mais descia, a pedra ganhava mais velocidade. Estavam chegando de volta à casa de morada quando se ouviu um estrondo medonho na parede de estuque da cozinha. O velho dono do sítio arfava de cansaço quando lhe abriram um claro para que visse o tamanho do estrago que fizera aquela pedra: abriu um buraco na parede entrando cozinha adentro indo parar no meio dos destroços do fogão tendo ao lado a esposa e filha mais nova ainda de pijamas de pelúcia. Desanimado, Manoel pegou uma pomboca de querosene, olhou bem para a obra do filho e gritou: “Alcides, seu urubu, o que mais eu não sei de ti?”

E dele sequer lhe suspeitava ter ocorrido a vocação despertada durante aquela caçada. O rapaz voltou para a cidade e hoje é dono de uma empresa especializada em demolições.

 

UM CÉU PARA JOSIMA

Na portaria do Hospital de Caridade, João Batista lia o jornal com a história de uma pedra enorme que ameaçava os moradores no Morro da Mariquinha. De estatura mediana, o homem era quase um monte de ossos que, quando sorria, dava a impressão de só ter dentes no rosto. Ainda assim, sempre amanhecia dali o que aquele radiante negro tinha de melhor: o sorriso amistoso. Isso lhe rendia amizades. Diziam que ele tinha o dom da cura pela imposição das mãos. E que era um conselheiro que benzia. Naquele morro, tinha ele a sua boa fama conquistada ao longo do tempo. Absorto, lia a reportagem com atenção, pois conhecia umas pessoas que eram ameaçadas pela pedra da reportagem. E uma delas era a sua prima Josima, bondosa preta velha que não conseguia esconder o medo de morrer esmagada. Dizia ela ser um medo que lhe viera no sangue da mãe. Um medo de família que, ao procurar vencê-lo, às vezes faziam-na tomar atitudes que podiam surpreender. Havia mais de quarenta anos que tinha descido o morro em busca de um médico. A experiência não foi boa e no centro da cidade nunca mais voltou. Achava que o doutor ia lhe dar uns remédios para tirar-lhe as comichões do corpo. Mas ao invés de dar, ele pediu uma batelada de exames que a desanimou. Diante disso, a mulher procurou João Batista que diagnosticou ser alergia. O primo era daqueles que visitava as pessoas como se fora um médico de família. Daí em diante sempre chamava o amigo João para se consultar. Numa determinada noite, ao chegar em casa dessa mulher, Batista organizou um ritual místico do lado de fora rodeando a morada. Era um trabalho de proteção da casa e de tudo que havia dentro dela. Trotando um cavalo imaginário, passava diante da imagem de São Jorge bem colocada ao pé do granito ameaçador. O homem cavalgava de olhos fechados. A imagem do venerável santo guerreiro ali permanecia como se pretendesse afrontar o monstro granitoso que sobressaltava o frágil mundo da humilde mulher. João Batista recomendou que à noite, ao pé da imagem, sempre houvesse uma vela acesa para iluminar o que estava invisível no entorno. Depois de rodear a casa, o benzedor entrou na casa para terminar o trabalho de libertação do espírito e cura do corpo.

Toda vez que João Batista a visitava, a mulher percebia algo que nunca entendia. A despeito de estarem somente os dois no recinto, ela enxergava três sombras revoluteando no chão. Nunca chamou a atenção do primo para saber que mistério era aquele, pois de mistérios ela estava com a vida cheia. Mas o bruxo negro percebia tudo e recomendava para ela nunca se esquecer que os humanos nunca estão sós. E isso ia reforçando na mulher a crença nas coisas do outro mundo, local onde depositava sua mais forte esperança, porque neste mundo ela sentia-se abandonada.

Veio a temporada das chuvas e, numa noite barulhenta, Josima entrou em oração e quase nem se alimentou de tanto empenho. O interior da humilde casa rescendia arruda. A cada riscada de raio no céu escuro, ela emitia um grunhido grave como a dizer que respeitava o raio. A cada novo estrondo do senhor do medo, ela emitia outro som grave para dizer que concordava com o trovão. Nas agia assim porque tinha era medo. E então falou algo como: “Fica-te aí, pedra que não te quero. Tu hás de um dia rolar, porém hoje não". Ao fechar a fresta, espargindo arruda molhada na direção da pedra, desejou que não fosse aquele o dia de sua morte. Se João Batista estivesse no recinto, era capaz de cair na risada diante da saudação respeitosa da mulher. Ele sabia que nem sempre o céu atende as sinceras preces dos bons. Sabia mais, que Deus prefere atender ao que lhe pede a natureza, ao invés dos impensáveis pedidos dos humanos. Não era porque ela era velha, pobre e inofensiva que Ele iria dar-lhe lugar refrigério. O feiticeiro bem sabia que o perfil inofensivo só se instaura porque não tem chance de ser perverso. E mais, pregava que a justiça do céu pouco tem a ver com a bondade das velhinhas que vivem rezando. Com olhos de ver a dureza na poesia, Josima pensava contra si: “Aquela pedra está por um fio. Se rolar, me leva. O engenheiro diz que não rola, mas se ela quiser, ela vem e me leva com o segredo que parece guardar. Desconfio que essa medonha seja inimiga da minha alma. Cara de malvada ela tem. Ameaça a gente toda vez que chove. O melhor é sair daqui o quanto antes, porque sem medo não se cria coragem nessa vida”.

Ela temia a própria mortalidade, mas a cultura escravocrata lhe oferecera crenças e rituais que a protegiam desse medo. Jamais via suas crenças ameaçadas. Um ataque a elas despertava-lhe o medo básico da morte. E acordar esse monstro ia fazê-la capaz de tomar decisões que nunca tomaria em sua vida cotidiana. Atravessar esse limiar do terror ia deixá-la disposta a morrer para preservar suas crenças porque, acreditava, era somente isso que podia continuar vivendo depois dela própria. Vivendo naquele morro parecia ter mais ligação com a África distante do que com a cidade onde nascera. Ela precisava acreditar em algo que iria viver depois que morresse.

Entretanto, o barulho da chuva lhe tirava a atenção do quintal. Ela abriu uma fresta na janela para vigiar o correto plantão de Oxossi, o senhor da mata escura. A chuva seguiu virando enxurrada com vontade de levar tudo por diante. Ameaçava os bichos, o morro, a pedra, a casa, as pessoas. Fora das calhas, a água se esparramava por onde pudesse correr. Água já depositada em cima dos telhados e sobre a grave pedra, enfraquecendo-lhe os contornos. Não se escutavam mais as pessoas, somente o estardalhaço da chuva desenfreada. O dilúvio revelava um clima de emergência, como se algo ruim estivesse acontecendo. E então, por determinação de Xangô, que mora nas pedreiras e é o senhor das tempestades, a hora fatal da negra velha chegou. Atônita, ela ouviu um forte estalo vindo da direção da pedra tão vigiada. Foi tão grande que Josima escancarou a janela para examinar o estrago. Imediatamente um mormaço abafado perpassou-lhe o corpo enxugando toda a água nele contida para sentir a boca seca. Percebeu não mais um cheiro de arruda, mas um agradável perfume de alfazema. Sentiu como se tivesse engolido uma jarra cheia de sol. Em paz, esboçou leve sorriso de compreensão, pois entendeu a correlação que submetia seu frágil corpo. Não havia ninguém por perto. A pedra não estava mais no lugar, havia descido morro abaixo e fora parar no meio da avenida.  Sem saber como, viu-se colocada na sala da casa vizinha. Decorreram-se alguns segundos até conseguir redesenhar a sequência das cenas. E, quando o fez, entendeu que bem podia ter morrido. Para não ser surpreendida naquela sala estranha, saiu para ver a própria casa demolida e, se conseguiu escapar com vida, isso só podia significar que uma coisa: um milagre acontecera, porque ela estava viva. Um pouco mais abaixo, de outras duas casas só ficaram os escombros e os gritos de desespero. O rastro de destruição se apresentou como um tapete de horror estendido na encosta.

Os bombeiros falavam, mas ela não os entendia apropriadamente porque estava em choque. Aos poucos foi se acalmando e pediu para subir o morro porque não soubera como descera. Mas foi levada ao hospital para cuidar da perna fraturada. Percebeu que ali tudo havia se modernizado. Parecia outro estabelecimento no mesmo local. Era um hospital estranho, mas tudo rigorosamente branco e real. Enquanto aguardava uma cadeira de rodas avistou João Batista e perguntou-lhe:

— O que houve comigo?

E ele:

— Pode chamar de milagre, se quiser. Você muito trabalhou com o objetivo de se preparar para a morte e merecer o céu. Hoje você ressuscitou para seguir adiante.

— Estou apavorada, balbuciou diante de tanta revelação.

E João Batista arrematou com bondade.

— O segredo é deixar-se tocar pela vastidão da eternidade.

 


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