Contos

 

A Menina e a Cigarra

Crisa era uma graciosa menina de oito anos, que adorava a natureza. Costumava andar pelo quintal de sua casa, a procura de algum animalzinho com quem pudesse brincar. Mal acordava, corria para lá, cheia de entusiasmo.

Sentia-se muito sozinha, porque sua mãe não permitia que ela fosse até a casa dos vizinhos para se reunir com outras crianças. Por ser filha única, Crisa era muito protegida por seus pais e esse fato a tornava muito triste.

Certo dia, enquanto o sol aquecia seus cabelos negros e o perfume das flores se espalhava pelo ar, a menina Crisa escutou o alegre canto de uma cigarra, pousada no galho do pessegueiro. Aproximou-se admirada com a beleza daquele animalzinho tão frágil e, ao mesmo tempo, tão belo e talentoso. Permaneceu assim, por longo tempo, escutando a deliciosa melodia da cigarrinha, que agora, já era sua amiga.

Crisa deu-lhe o nome de Linda, pela beleza de suas asas transparentes. Na verdade, linda era a amizade nascida entre as duas...

Linda cantou o dia inteiro para sua nova companheira... À tardinha, o sol se escondeu entre as nuvens e o vento soprou forte no arvoredo. Crisa protegeu sua amiga entre as mãos, levando-a para seu quarto.

Que ótima idéia! Logo caiu um verdadeiro toró... Se estivesse lá fora, certamente a cigarrinha não teria sobrevivido.

As horas se passaram e Crisa adormeceu... Sobre a mesa-de-cabeceira, dentro de um pequeno pote, Linda também se deixou levar pelo sono.

Na manhã seguinte, a menina é acordada pelo canto inconfundível da cigarra amiga, como a convidá-la a voltar ao quintal.

Após o café, as duas iniciam a brincadeira: Linda no galho do pessegueiro e Crisa sentada no banco de madeira, a escutar seu canto. As flores da laranjeira se espalham pelo chão, enfeitando tão belo momento...

Agora Crisa já não sente mais solidão. E Linda já não canta mais sozinha. Todos os dias seriam alegres, cheios de encanto e de poesia, como aquela manhã em que se conheceram.

Assim, a felicidade pode estar nas pequenas coisas... A solidão é uma questão de escolha... A amizade aquece a alma e o amor preenche o vazio de seu coração...

Busque a felicidade, mande embora a solidão e abasteça seu coração com todo o amor que nele couber.


Além da lua

 

Sabrina pulou da cama num instante, temendo esquecer dos detalhes do sonho que tivera na noite passada. Na pressa de registrar suas emoções no confidente diário, deixou cair a jarra de água, transformando o piso do quarto em um amontoado de cacos de vidro, que brilhavam sobre o líquido derramado.

Assustada pelo grande ruído, sua mãe, Judite, mal esperou que a filha abrisse a porta:

- Meu Deus, Sabrina! O que aconteceu com você?

- Nada, mamãe! Foi somente a jarra que escorregou da mesa. Está tudo bem, como a senhora pode notar.

Sabrina e Conrado eram os únicos filhos de Judite e Afonso. A família residia em um pequeno sítio, no interior do Rio Grande do Sul, Rincão das Acácias, recanto coberto por variadas flores. Durante o inverno, a geada castigava a plantação, transformando a paisagem em um imenso lençol de alvura.

Após a conclusão do Ensino Fundamental, os dois jovens passaram a dedicar-se, com seus pais, aos afazeres do campo. Para uma família pobre, era quase impossível morar na cidade e manter tantas despesas com alimentação e alojamento.

Romântica e sonhadora, Sabrina sempre encontrava algum tempo para apreciar a natureza e o céu estrelado. No auge dos seus dezenove anos, nunca deixou de sonhar com o futuro; inspirava-se no horizonte azul, para escrever seus lindos versos.

Seu corpo esbelto, os cabelos negros e longos, davam-lhe um ar de linda índia brasileira.

Dois anos mais velho, Conrado não tinha grandes pretensões; o trabalho do campo satisfazia, de forma total, suas aspirações.

Com longas pernas e cabelos esvoaçantes, cavalgava pelo povoado, em busca de melhores preços para a ração dos animais e os demais mantimentos consumidos pela família.

Seu pai, Afonso, de família humilde, desde cedo aprendeu a cuidar da lavoura e do gado, sustentando sua família com a venda de legumes, ovos, leite e demais derivados. Formavam uma família feliz, pois o amor e a união habitavam naquele lar tranquilo e honesto, apesar das dificuldades que, algumas vezes, enfrentavam.

- Não sonhe demais, Sabrina, pois os sonhos poderão levá-la com eles, sabe-se para onde... Eu tenho os meus pés bem plantados no chão, como a velha figueira atrás do curral. Assim, lhe falava Conrado, preocupado com os devaneios da irmã.

- Quando eu deixar de sonhar, Conrado, é porque a vida já não mora mais em mim. Quero navegar nesse imenso azul que me fascina, contar as estrelas, sorrir para elas e imaginar que elas também gostam de mim. Eu sou mesmo assim, meu irmão, não tente mudar-me. Sabrina justificava-se com sabedoria, diante da insistência de Conrado.

Como impedir de sonhar a alma sedenta de afeto, de carinho, de uma grande paixão? O horizonte azul e o céu estrelado eram um convite à aventura no misterioso desconhecido.

Afonso e Judite conversavam muito pouco com os filhos, sempre preocupados com a plantação e cansados com as duras tarefas do seu dia a dia.

- Trabalhem, meninos, um dia terão os filhos de vocês e precisarão sustentá-los. Vão aprendendo a se virar desde cedo... Assim lhes falava Afonso, com seu jeito um tanto rude, mas carinhoso.

Já nas primeiras linhas do diário, Sabrina expressou toda a emoção do seu lindo sonho:

- Ainda sinto as batidas do meu coração; tomara que meu sonho se transforme em realidade...

Com as mãos trêmulas de emoção, a jovem iniciou a romântica narrativa, deslizando a imaginação, pelas linhas do velho caderno. Um belo jovem, de expressivos olhos azuis, surgiu à sua frente, durante o sonho; com meiguice, segurou suas mãos e lhe falou:

- Sabrina, vim trazer-lhe os meus olhos azuis; eles serão o céu estrelado que, de hoje em diante, iluminarão seu caminho. Você gostou deles? São seus...

- Mas, como poderei pegá-los? De onde você vem? Não partirá com o sonho? Não sei qual o seu nome. Onde encontrá-lo? Espere, não vá embora sem responder-me!

- Estarei além da lua, Sabrina, onde somente os sonhadores conseguem chegar. Nunca deixe de sonhar, pois os sonhos refrigeram a alma, confortam o coração e impulsionam a esperança de viver. Você é muito  bonita e não merece viver na solidão.

- Puxa, que palavras lindas! Conrado precisa ouvir você falar assim, ele é tão desinteressado e sem aspirações...

Gostei dos seus olhos, sim. Vou guardá-los, como lembrança, em meu coração, onde residem meus segredos. Assim, ninguém jamais irá tirá-los e mim. Mas, por favor, diga-me seu nome! Quero escrevê-lo, muitas vezes, em meus poemas.

Sabrina acordou, interrompendo o estranho e delicioso diálogo. Guardaria, em segredo, aqueles momentos de ternura. Ninguém os entenderia mesmo: seriam bobagens de adolescente, ilusão passageira e banal, enfim, tempo desperdiçado com futilidades.

Os dias continuaram rotineiros, no Rincão das Acácias. Cansativo trabalho, alguns sonhos espalhados pelo vergel florido, muitas esperanças no coração de Sabrina que, ansiosa e impaciente, aguardava a  chegada de um futuro risonho.

Agora, seu futuro já tinha uma cor definida: a sua preferida, o anil que, por muitas vezes, admirou no firmamento, o horizonte bordado de nuvens alvas, onde o sol vinha depositar seus luminosos raios...

Que importância poderia ter um nome, se a alma já o elegera como um verdadeiro encanto? Por que lamentar a espera, se a certeza da felicidade já dominava todos os seus sentidos?

Naquela tarde, grande tempestade encobriu o céu do Rincão das Acácias. Foi necessário rebanhar o gado, às pressas, para que não despencasse no grande barranco, ao tentar fugir da tormenta. Eram poucos animais, mas, muito necessários à produção do leite e da carne para o consumo e a venda.

Ao aproximar-se do barranco, Sabrina escorregou no pasto molhado, batendo a cabeça em uma grande pedra. Seu pedido de socorro ecoou pelo ar impregnado de terra e de folhas secas, antes de perder os sentidos.

Conrado correu para socorrer a irmã, com lágrimas nos olhos, pois jamais presenciara uma cena tão tristonha. A seguir, chegaram Judite e Afonso, muito preocupados com o acontecimento.

Sabrina foi levada, às pressas, à única farmácia da redondeza.  Assim, era a vida no vilarejo de poucos recursos: o médico do lugar era o próprio farmacêutico. Judite e Afonso tinham consciência de que o atendimento seria precário, mas o único que lhes restava, naquele momento de aflição.

- Salve nossa filha, seu Inácio! Não a deixe morrer.

O tempo passou, de maneira lenta. Sabrina recuperou-se, aos poucos, mas, com uma profunda tristeza: não mais poderia ver o céu azulado, as estrelas, o vergel florido. Sua visão foi afetada, no vil instante em que bateu a cabeça na grande pedra. Estava cega.

Sabrina chorou muito, ao saber do seu estado lamentável. Sua vida, antes simples e com muitas responsabilidades, tornou-se enfadonha e sem perspectivas.

Seus dias transcorreram tristonhos, na escuridão da cegueira, sem poder apreciar a natureza, sem fazer seus versos, sem poder ajudar seus pais na lida do campo, sem ter alguém para conversar ou fazer-lhe companhia. Estava cega e passava sozinha, praticamente, o dia todo.

A vida no campo era muito dura, para quem não tinha condições de contratar empregados para a lida diária.  Como já era de se esperar, a depressão tomou conta dos dias da jovem sonhadora.

Após um dia cansativo de trabalho, Conrado tomou seu habitual banho, saboreou um gostoso prato de sopa e foi até o quarto da irmã, tentando consolá-la:

- Sabrina, acorde, maninha! Vamos conversar, como nos velhos tempos?  Mas, eu vim falar com a Sabrina que confia no amor, aquela garota que não deixa de sonhar com a vida, com dias melhores, com a felicidade. Ande, dê-me um beijo e converse comigo.

Com um leve sorriso nos lábios, a jovem abraça e beija o irmão querido.

- Conrado! Agora que você falou em sonho, lembrei-me de um lindo sonho que tive alguns meses antes do acidente: o sonho com o jovem dos olhos azuis, que iluminariam minha vida. Guardei para mim esse segredo, como uma relíquia.

As lindas palavras do jovem desconhecido retornaram à mente de Sabrina, como uma bênção, um confortante afago:

“ - Nunca deixe de sonhar, pois os sonhos refrigeram a alma, confortam o coração e impulsionam a esperança de viver.”

- Meu Deus, Conrado! Parece que o moço do sonho sabia o que aconteceria comigo! Ofereceu-me seus olhos para iluminar meu caminho. Quem o teria enviado? Como previu esse meu triste futuro? Como chegarei além da lua, onde ele está? Que loucura!

Emocionado, Conrado respondeu-lhe:

- Os seus sonhos poderão levá-la para além da lua, maninha, como em muitos outros lugares. Lute por eles, por dias melhores, pela felicidade. Um dia, ela baterá em sua porta, de algum jeito, de alguma forma, por pequena que seja, trará a você algum alento.

- Como, meu irmão, se minha vida está pior do que antes? Assim, sem enxergar, não sinto vontade de ir a lugar algum. Está tudo tão difícil para mim.

- Veja com os olhos da alma, abrace a esperança que jamais a abandonou, mesmo nos momentos difíceis, lembra?  Busque o céu e as estrelas, com os olhos da imaginação, e os verá, com a mesma nitidez de antes. É necessário que saibamos adaptar-nos às várias situações de nossa vida, minha irmã.

- Estou percebendo que você mudou sua maneira de pensar. Arrancou seus pés do chão? Não é mais como a velha figueira? Será que o amor bateu em seu coração?

- O amor sempre esteve em meu coração, Sabrina. O amor por você, por nossos pais, pelo lugar onde nascemos, enfim, por todas as coisas que conquistamos. Apenas, estava adormecido. Foi preciso que eu passasse pela dor de ver você no fundo desta cama, para buscar esta realidade dentro de mim.

-  Que palavras lindas, Conrado! Fico feliz por você pensar assim. Obrigada, meu irmão!

Os anos transcorreram sem grandes novidades, como tudo passa nesta vida.

Os pais de Sabrina continuaram tocando o pequeno sítio, com a ajuda do filho. Muito trabalho, pouco dinheiro, e a infelicidade de ver a filha querida na mais completa escuridão.

Em meio a esta rotina, inesperadamente, um novo horizonte surgiu para a jovem sonhadora: com o avanço da medicina, sua deficiência visual foi solucionada, por um jovem médico, recém chegado da cidade de Santa Maria, que montou seu consultório no povoado, agora já mais estruturado e desenvolvido. Era uma pequena cidade, embora continuasse com o antigo nome de Rincão das Acácias.

O antigo diagnóstico do farmacêutico não estava totalmente correto, mas, somente após tanto tempo, esse erro foi confirmado e corrigido.

Nos vilarejos antigos e distantes, a realidade era esta: dificuldade para locomover-se até a cidade mais próxima, dificuldade para comprar roupas, calçados, medicamentos e outros produtos.  Cada um se virava como podia. Havia muita barganha entre os vizinhos. Assim, resolviam seus problemas.

- Vamos tirar o curativo, Sabrina! Prepare-se para a emoção de ver a luz novamente.

Trêmula, mas confiante, a jovem abre, lentamente, os olhos, fascinada com o que vê.

- Doutor Juliano, estou vendo o senhor! Estou vendo o senhor! Que alegria, Meu Deus! Que alegria!

- Aos poucos, as imagens irão ficando mais nítidas. Continue com esta medicação por mais quinze dias. Após esta data, faremos novos exames. Mas está tudo muito bem, pode voltar a fazer seus poemas.

Perplexa, Sabrina fixou seu olhar nos olhos do médico.  Eram iguais aos olhos do jovem do antigo sonho: cristalinos, meigos e cheios de azul celeste.

Aqueles dois pedacinhos do céu, que tanto a impressionaram, e que a fitaram com tanta ternura, estavam ali, à sua frente, como mágico destino. Devolveram-lhe a luz e a possibilidade de ser, novamente, feliz .

Como explicar os mistérios da vida e do amor? Acaso, destino, sorte, coincidências, pensamento positivo? Ou, apenas, ilusão?

No meu humilde entender, de tudo isso, um pouco. Tenho comigo, desde minha juventude, este pensamento, de autor desconhecido:

- “A minha força de vontade é a base da minha glória.” Esta é força que impulsiona e que nos conduz à vitória. Não a deixe escapar.

Há, somente, um grande perdedor nesta vida: aquele que desiste antes de tentar, que não luta pelos seus ideais. Este, sim, é um fracassado que se perderá no caminho, porque se omitiu diante da dificuldade.

Nunca deixe de sonhar, pois os sonhos refrigeram a alma, confortam o coração e impulsionam a vontade de viver.

- Vamos comemorar esta vitória, Sabrina? Que tal jantarmos juntos e nos conhecermos melhor?

- Claro, doutor Juliano, será um grande prazer acompanhá-lo! Creio que cheguei além da lua...

-  Não entendi muito bem sua última frase. Quer repeti-la, por favor?

-  Eu falei que o seu convite deixou-me muito feliz, doutor.

Sabrina estava radiante de alegria, ao lado dos dois pedacinhos de céu que tanto a fascinaram. Eles estariam junto aos seus, pela vida afora, como a promessa do sonho.

Os sonhos residem além da lua, na imaginação e na vontade de cada Ser. Vontade de realizá-los e de encontrar a felicidade.

Cabe a cada um de nós alcançá-los... Lute pelos seus!


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